Investigações emocionantes: capas, traduções e anos 1990
Como a pesquisa das capas pode ajudar no mapeamento do romance contemporâneo? A newsletter trata de iconografia, tradução e também do romance “Onde andará Dulce Veiga?”, de Caio Fernando Abreu.
Olá!
Esta é a segunda edição da newsletter do projeto Praça Clóvis — um mapeamento crítico da literatura brasileira contemporânea.
Na edição de hoje, vamos abordar a pesquisa iconográfica, isto é, a pesquisa de capas de romances brasileiros. Compartilharemos a experiência de Alice Sallas nesta investigação, que nos fornece pistas valiosas para compreender a trajetória de livros em diferentes momentos históricos.
E falando em investigação, vamos abordar um romance de 1990: Onde andará Dulce Veiga?, do gaúcho Caio Fernando Abreu, a partir de um texto crítico de Amanda Bruno de Mello. Vamos ainda trazer a relevância da tradução da literatura brasileira no exterior.
O projeto Praça Clóvis prevê a construção de um site com resenhas críticas de romances de 1970 aos dias de hoje. Como o site está em construção, esta newsletter conta um pouco de nossos bastidores.
Se você trabalha com livros, dá aulas ou gosta de ler, este projeto é feito para você.
Agradecemos a sua leitura!
Iconografia: uma investigação minuciosa
Pesquisar capas de livros publicados há muitos anos não é uma tarefa simples. Nem sempre é fácil localizar quais foram as edições antigas. Ou ainda, as fotos estão ruins e sem definição.
A pesquisadora Alice Sallas conta para nós alguns detalhes sobre esse trabalho que fornece muitos dados sobre os romances resenhados.
"Trabalhar com a pesquisa iconográfica das obras selecionadas tem sido uma tarefa desafiadora e muito gratificante. O processo envolve uma combinação única de pesquisa profunda e habilidades técnicas. Cada livro possui características únicas, e é fundamental captar os elementos literários para criar um diálogo perfeito entre as capas e as ilustrações.
Ademais, o processo de iconografia requer diligência, e quando múltiplas revisões são necessárias, o tempo se torna um recurso precioso. Portanto, a gestão eficaz do tempo e a capacidade de priorizar tarefas têm sido práticas essenciais para garantir que os prazos sejam cumpridos sem comprometer a qualidade do trabalho.
A possibilidade de contribuir visualmente para a representação das obras literárias selecionadas é fonte de grande satisfação e uma experiência extremamente enriquecedora. O resultado final aprofundará a experiência dos leitores, proporcionando uma conexão mais significativa com as obras."
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A equipe de iconografia hoje possui a colaboração de muitas pessoas, todas voluntárias, com um levantamento surpreendente. Aos poucos, esse mosaico ficará completo.
As capas perdidas e suas pistas
Localizar traduções antigas e ainda imagens da capa não é simples. Em muitos casos, demoramos para encontrar uma em resolução razoável. Noutros casos, como saber quais foram as traduções?
Um de nossos maiores aliados é o banco do ISBN (International Standard Book Number), aqueles números pequenos do código de barras de um livro que servem para ajudar na circulação e sua catalogação.
As capas são relevantes, pois geralmente são nosso primeiro contato com uma obra, capazes de transmitir o estilo ou os temas de um livro. No caso do romance de Caio Fernando Abreu, Onde estará Dulce Veiga?, observar as capas antigas evidencia também um percurso da obra.
Por exemplo, depois da publicação, em 1990, no Brasil, o romance recebeu uma edição francesa pela Autrement (1994). Após o falecimento do escritor, sairia a edição alemã pela dtv (1997) e, em ondas, o livro logo chegaria aos EUA (2000 e 2001), à Itália e à Argentina (2011) e finalmente a Portugal (2012).
Inclusive, se você está se perguntando, afinal de contas, Onde andará Dulce Veiga? por aqui, a última edição é da Nova Fronteira (2016), com reimpressões. Será que não estaria na hora de aportar uma nova e caprichada edição brasileira? Quem sabe?
Algumas das edições do romance de Caio Fernando Abreu:
Original: São Paulo: Companhia das Letras, 1990
Itália: trad. Adelina Aletti, Roma: La Nuova Frontiera, 2011
Portugal: Lisboa: Quetzal, 2012
Alemão: trad. Gerd Hilger, Berlim: Diá, 2013
Espanhol: trad. Claudia Solans, Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011
Uma das últimas edições: Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016
Onde estará Dulce Veiga?, um caleidoscópio de possibilidades de experiência humana
Caio Fernando Abreu publicou Onde estará Dulce Veiga? em 1990. Gaúcho, nascido na cidade de Santiago do Boqueirão, quando publicou o romance, já era um escritor premiado por narrativas curtas: Triângulo das Águas ganhou o Jabuti em 1984 e Os dragões não conhecem o paraíso, em 1988. Esse romance iria ganhar o APCA.
Amanda Bruno de Mello, professora na Universidade Federal de Santa Catarina, responsável por redigir o texto crítico sobre o romance ao site, apresentou o livro da seguinte forma em sua resenha:
“O protagonista, que narra o livro em primeira pessoa, é um jornalista prestes a completar 40 anos, que vive em condições bastante modestas e que acabou de conseguir um trabalho após um longo período de desemprego. Em sua primeira tarefa no jornal, entrevista a vocalista de uma banda de rock e descobre que ela é filha de Dulce Veiga, uma cantora que havia desaparecido nos anos 1960, no dia da estreia de seu primeiro show importante, que a alçaria, muito provavelmente, ao estrelato. O protagonista escreve, então, a crônica ‘Onde andará Dulce Veiga?’, na qual relembra o talento da diva e questiona seu paradeiro.”
Na resenha, aponta-se que ler o romance hoje é acessar um Brasil na era da redemocratização, com fantasmas do período ditatorial, somado à pandemia do HIV desde os anos 1980, que afetou particularmente a comunidade LGBT+:
“o próprio narrador não sabe dizer se é homossexual ou não, o personagem de Jacyr/Jacyra, embora não use esse termo, é gênero fluido, alternando as identidades de homem e mulher. Num país herdeiro da tentativa de imposição de uma moral cisgênero, heterossexual, machista, padronizada e reprimida, Abreu dá destaque principalmente às personagens que fogem a essas características.”
A resenha completa, acompanhada de referências e capas do romance, será publicada no site no final do ano.
A tradução, um ampliar fronteiras
O ato de traduzir, principalmente vozes do Sul Global, nem sempre conta com ventos favoráveis e, muitas vezes, depende de paixões e persistências de quem traduz.
Um depoimento da tradutora estadunidense de Onde andará Dulce Veiga?, Adria Frizzi, que também traduziu Osman Lins e Marina Colasanti, revelou à pesquisadora e tradutora Maria Lúcia Santos Daflon-Gomes que a obra caiu-lhe nas mãos por acaso:
“O Caio tinha acabado de falecer, um amigo e colega tinha me falado sobre seu trabalho e, em especial, sobre Dulce Veiga, algo que instigou a tradução. Na época, ainda não tinha ouvido falar de Caio, mas li Dulce, adorei e decidi traduzir. Adoraria traduzir mais também, mas encontrar editoras para traduções é extremamente difícil nos EUA.” (DAFLON-GOMES, 2005, apud AQUINO e HAUSEN, 2011, trad. livre).
Apesar de os Estados Unidos exportarem sua literatura produzida ao redor do planeta, a participação das traduções de outros idiomas no mercado de literatura “era de apenas 3%” em 1990 nos EUA, segundo a pesquisadora francesa Gisèle Sapiro (2014, p. 35). Assim, o esforço de Adria Frizzi e a iniciativa da editora Universidade do Texas merece ser reconhecido.
Recebemos um emocionante depoimento da tradutora Claudia Solans, a responsável pela edição argentina do romance, exclusivamente para esta newsletter:
"O extraordinário romance de Caio Fernando Abreu, que traduzi para a editora Adriana Hidalgo, em 2008, foi uma porta de entrada não só para o universo ficcional e pessoal de Caio, mas também para a política e a cultura do Brasil nos anos de chumbo e para a década de 1990.
Sua prosa límpida, às vezes brincalhona e sempre agradável, conseguiu me fazer esquecer que eu traduzia, que eu estava "trabalhando". Foi uma jornada intensa, me levou às profundezas de uma realidade, às vezes irrespirável, na qual a violência, a AIDS e a pobreza eram protagonistas. A magia de Caio, entretanto, estava em conseguir um equilíbrio entre a dureza da realidade, a leveza de sua prosa, seu senso de humor e seu profundo conhecimento da alma humana, nos oferecendo uma história de amor e luta, uma história da busca pela própria voz."
Agradecemos à tradutora por esse depoimento tocante.
Batalha de capas
Para fechar a edição, trazemos uma pergunta: qual a melhor capa para o romance de Caio Fernando Abreu? A edição alemã, a francesa ou a estadunidense?
Essa não está fácil. Mande seu comentário!
Aproveite para conhecer nossa primeira edição da newsletter do Praça Clóvis, com a seleção de três capas estrangeiras e detalhes sobre o romance As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto (1982).
https://pracaclovis.substack.com/publish/post/144703756
Dica: Poesia traduzida
Deixamos ainda um convite para você conhecer um outro projeto valioso: Poesia Traduzida. O projeto disponibiliza um catálogo on-line da poesia traduzida publicada no Brasil nos séculos XX e XXI. Acesse em:
https://www.poesiatraduzida.com.br
Referências
DAFLON-GOMES, Maria Lúcia Santos. Identidades Refletidas: Um estudo sobre a imagem da literatura brasileira construída por tradução. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 2005, apud AQUINO, Janaina, e HAUSEN, Isadora, “Crítica de Tradução: Onde andará Dulce Veiga? - Whatever Happened to Dulce Veiga?”, In: Ecos da Tradução, junho de 2011. Disponível em https://ecos-da-traducao.blogspot.com/2011/06/critica-de-traducao-onde-andara-dulce.html
SAPIRO, Gisèle. "Translation as a Weapon in the Struggle against Cultural Hegemony in the Era of Globalization." In: Bibliodiversity, Translation and Globalization, p. 31-40, 2014. Disponível em https://www.alliance-editeurs.org/IMG/pdf/bibliodiversity_3_sapiro-3.pdf
Sobre esta edição
Esta foi a segunda edição da newsletter do Praça Clóvis
Mapeamento crítico da literatura brasileira contemporânea
O nome "Praça Clóvis" busca marcar um espaço de circulação e convivência de ideias, além de ser uma homenagem à canção de Paulo Vanzolini.
Realização
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC), da Universidade de Brasília (UnB), com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Coordenação do projeto
Regina Dalcastagnè (UnB)
Créditos desta edição
Texto: Ana Rüsche e Priscila Calado
Depoimentos: Alice Sallas e Claudia Solans
Ilustração: Bernard Martoni
Revisão: Leda Cláudia da Silva
Brasília, 1º de julho de 2024.
Amei! Meu voto é na capa 2.
Voto na capa 2.